Na última quinta-feira, André roubou, com uma faca, o celular de um passageiro do transporte coletivo. O menino está jurado de morte no Bairro Jardim do Cerrado 1, na Região Oeste da capital, onde ele mora com a mãe, de 32 anos, e o irmão, de 4 anos. Vestido com uma camiseta do Bob Esponja, personagem de um desenho infantil, o menino não esconde sua postura arredia e o olhar desconfiado. O menino, que perdeu o pai assassinado quando estava com três anos de idade, chega a simular sono, tentando impedir que a conversa continuasse. Está sempre atento a qualquer movimento feito perto dele. “As pessoas têm medo de mim. Sei disso porque elas abrem um olhão quando fico mais próximo”, contou ele, comemorando.
Fã da história dos Três Porquinhos, que ganhou versão em desenho animado, André já brigou até com um traficante de drogas, porque o homem teria rasgado a bola dele. “Se ele não tivesse feito isso, não teria caguetado ele para a polícia”, relatou o menino, para emendar: “Os traficantes nunca me deram brinquedo, mas me dão dinheiro, para eu comprar as coisas. Já comprei até uma arminha (simulacro de revólver).”
A gravidade que o garoto representa para os moradores já quase o levou à morte. Em maio, a comunidade do Jardim do Cerrado chegou a pegá-lo para fazer linchamento. “As pessoas pegaram ele e seguraram. Só não mataram porque a polícia não deixou”, afirmou o bacharel em Direito, Dácio Anacleto Oliveira, presidente do Conselho Tutelar da Região Campinas, que, assim como os demais da cidade, sofre com a falta de infraestruturas física e de pessoal adequadas, para fazer atendimento.
Cerca de 15 mil famílias moram nos bairros Jardim do Cerrado (do 1º ao 7º), que tiveram, em agosto de 2009, as primeiras casas entregues à população pelo Minha Casa, Minha Vida, programa do governo federal. “Não paro lá onde moro porque não tem nada para fazer”, reclamou o menino, que, no início do ano, fugiu de casa por 60 dias para Inhumas. Ninguém sabe o motivo. Ele também não diz. “Fui andar, só isso”, resumiu o menino.
A mãe de André começou a procurar o Conselho Tutelar ainda em 2008, quando, segundo ela, o menino, na época com 4 anos, começou a “dar trabalho na creche e a desrespeitar.” Eles moravam antes no Setor Santos Dumont, na Região Noroeste de Goiânia. “Não adianta mudar de lugar”, lamentou a mulher. Durante a entrevista, a mãe do garoto chupou um pirulito que havia sido dado para ele. “Não precisa dar outro, não. Tiro o pirulito de dentro dela”, disse o garoto. André largou a escola na segunda série, mas consegue ler e escrever. Ainda na sexta-feira, ele voltou para a casa com a mãe.
Conselheiro busca abrigo para André
O bacharel em Direito Dácio Anacleto Oliveira, presidente do Conselho Tutelar da Região Campinas, que acompanha o caso de André, vai protocolar, hoje, no Juizado da Infância e Juventude de Goiânia, um pedido de acolhimento, em algum abrigo de Goiânia. “De cada 10 abrigamentos que vamos fazer, pelo menos 7 têm de passar antes por uma luta para conseguir vaga”, reclamou ele. A Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás e o Ministério Público (MP) estadual se manifestaram sobre a situação.
A família e o governo do Estado, assim como as instituições responsáveis pela proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes, devem ser responsabilizados, judicialmente, se o caso do André mostrar que houve omissão por alguma das partes. É o que destacou a advogada Mônica Araújo de Moura, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO. “É preciso apurar onde houve a omissão”, alertou ela.
Para o promotor de Justiça Alexandre Papa, que atuou 15 anos no MP na área de defesa dos direitos da infância e juventude, o caso de André mostra que o Estado e a Prefeitura falharam lá atrás. “O pode público chega sempre atraso a estas questões”, criticou ele, para prosseguir: “Se uma criança chega a este ponto, é porque houve falha antes, com a falta de políticas de educação, lazer e de meios que garantam que a criança tenha uma família estruturada. “A culpa é do Estado e da família, mas a mão que levou a criança a praticas isso foi a do Estado”, observou o promotor.
Criança envolvida em crime não tem atendimento
Apesar de protagonizar uma história de vida com apenas 9 anos, mas com enredo dramático, André não pode ser internado nem apreendido, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê esta medida apenas para adolescentes que praticam atos infracionais. Ele pode, contudo, receber acolhimento institucional. O assessor especial da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), Arildo Ramos, disse ontem ao POPULAR que a pasta vai acompanhar o caso e prestar toda assistência necessária, caso a família tenha interesse.
Reportagem do POPULAR mostrou, na edição de 11 de agosto deste ano, que, no entanto, a situação não é nada animadora. Os investimentos aplicados na área de assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade social despencaram de R$ 2,5 milhões, em 2011, para R$ 574 mil, em 2013. Um dos reflexos disso é a falta de atendimento a crianças. “Não temos, de forma institucionalizada, a quantidade de vagas suficientes em abrigos”, admitiu o assessor especial da Semas. “Mas sempre vamos insistir na solução do problema juntamente com a família, o Ministério Público e até o Juizado da Infância e Juventude”, continuou ele.
Sobre a falta de escola no Jardim do Cerrado 1, na Região Oeste de Goiânia, onde mora André, a Secretaria Municipal de Educação (SME) de Goiânia informou que está em construção o Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) Jardins do Cerrado 4 e a Escola Municipal Jardins do Cerrado 1. Além disso, segundo a pasta, as obras do Cmei Jardins do Cerrado 4 devem se iniciar ainda este semestre. Com a conclusão das obras, serão abertas 1,6 mil vagas para o ensino fundamental e 320 vagas para a educação infantil, conforme divulgado. O planejamento para a região inclui ainda a construção da Escola Municipal Jardins do Cerrado 7 e do Cmei Jardins do Cerrado 3, com previsão de entrega em 2015 e 2016, respectivamente.
“As pessoas têm medo de mim”
As respostas retratam a inocência e a fragilidade de um menino de 9 anos, que, apesar da pouca idade, consegue impôr medo em algumas pessoas. É ele que resgata da memória a imagem do pai que só conheceu por foto.
Você já passou por abrigos em Goiânia. Por que não ficou lá?
É muito ruim. Saio pela porta da frente ou pulo o muro. Estou nem aí.
Por que você está nem aí e pega coisas dos outros?
Porque não dá nada.
De onde são essas manchas escuras que você tem no rosto?
Eu estava surfando no ônibus. Peguei a garrafa pet e segurei na porta. O motorista viu, abriu a porta e caí.
Você vê isso como uma brincadeira?
Não. Gostava de brincar de pique-pegue e pique-esconde. Mas tenho vontade de ter um videogame.
Você conhece alguns traficantes…
Mas só que eles não me dão brinquedos. Pego dinheiro. Os traficantes nunca me deram brinquedo, mas me dão dinheiro, para eu comprar as coisas. Já comprei até uma arminha (simulacro de arma de fogo). Traficante só tem dinheiro e droga.
Você já usou droga?
Não, mas eles também usam. Não é pó. Já vi gente acendendo o cachimbo.
Você já ficou 60 dias fora de casa…
Fui andar, só isso.
Mas onde você fica aqui em Goiânia quando sai de casa e dorme fora?
Na casa de um homem que tem droga. Ele também tem até aquele negócio preto na perna (tornozeleira) com uma luzinha que só fica piscando. Ele não pode roubar, senão a polícia pega ele. Mas ele diz que a polícia não faz nada.
E você conhece outros…
Tem um tantão de traficante que conheço que tem isso aí (tornozeleira) na perna. O resto, que conheço, não tem.
Algum deles já te bateu?
Teve um que me bateu. Eu caguetei porque ele pegou minha bola e meus brinquedos. Peguei a bola, a bola estava rasgada e caguetei ele. Se ele não tivesse feito isso, não teria caguetado ele para a polícia. Só foi por causa do meu brinquedo.
E, depois, ele não disse mais nada?
Ele falou na delegacia que, quando sair, vai me matar. Mas os policiais falaram que ele não vai sair mais não.
Você também faz arrastão nos ônibus do transporte coletivo, para pegar objetos das pessoas…
As pessoas têm medo de mim. Sei disso porque elas abrem um olhão quando fico mais próximo.
Você não tem medo de apanhar?
Não.
E por que você faz isso tudo?
Não sei.
Qual o seu maior sonho?
Tinha vontade de ter pai. Só vi a foto dele. Pronto. Quero ir embora para casa, com a minha mãe.
Fonte: Jornal O Popular/ Foto: Renato Conde