O editorial do Popular do dia 06 de novembro último apontou que a lei é para todos quando mostrou decisão da Justiça do Rio de Janeiro que ganhou enorme repercussão no noticiário e nas redes sociais abordando o velho recurso da carteirada. Um magistrado ganhou uma indenização de uma agente de trânsito em danos morais porque ela disse que “juiz não é Deus”.
Como não conheço os autos do processo seria temerário da minha parte opinar sobre o mérito da ação cível. Faltaria com a ética também. Quero chamar a atenção para uma situação comum no dia a dia voltada para o aspecto criminal.
O que é “carteirada”? São pessoas que, valendo-se de suas “qualidades”, exigem tratamento diferenciado, almejam obter vantagens às quais não têm direito. A chamada carteirada é muito mais comum do que se imagina. Ser conhecido na mídia, ser filho de político, ter prestígio no meio social, ser agente público, policial, promotor, juiz, etc., são tendentes a isso. Claro que em sua minoria. O termo pode e deve ser empregado quando ilegítimo ou abusivo o seu uso. Esta sim é a verdadeira “carteirada” em sua real acepção da palavra. O simples fato de mostrar sua carteira profissional como identificação não constitui nenhum ilícito. Aliás, o documento foi elaborado exatamente para isso.
O analista processual do MPF, Thiago Xavier Bento escreve: “E sob o aspecto penal: essa forma de conduta também deve ser punida? Entendemos que sim, pois ela configura o crime de concussão. A chamada carteirada se subsume no tipo penal em questão (“Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida”).
Em que pese a opinião de doutrinadores, como Damásio de Jesus, Celso Delmanto e outros, que afirmam que a referida vantagem indevida deve ser patrimonial, trazemos à baila o lecionar de Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado – 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, pág. 863): “…vantagem indevida: pode ser qualquer lucro, ganho, privilégio ou benefício ilícito, ou seja, contrário ao direito, ainda que ofensivo apenas aos bons costumes … há casos concretos em que o funcionário deseja obter somente um elogio, uma vingança ou mesmo um favor sexual, enfim, algo imponderável no campo econômico… Não se tratando de delitos patrimoniais, pode-se acolher essa amplitude”. A pena é de dois a oito anos de reclusão e multa.
Outros acreditam tratar-se somente de improbidade administrativa, regulada pela Lei nº 8.429/92. A Lei nº 8.112/90 proíbe utilizar o cargo público em proveito pessoal ou de outro. O STJ já sinalizou no sentido de tratar-se de crime de abuso de autoridade.
Até hoje nunca soube que alguma figura pública foi presa por dar carteirada. A meu ver, deveria ser.
Afinal de contas é crime, ilícito civil, e é ato imoral dar “carteirada”. A figura da autoridade não pode ser vilipendiada com esta atitude de se valer de seu cargo e poder para amedrontar pessoas e, com isso, tirar proveito de uma situação tornando-se um mau profissional.
Autor: Jesseir Coelho de Alcântara é Juiz de Direito e Professor