Causos, contos e prosas

B.O. Nº 49 MEU PRIMEIRO DEFUNTO

A maioria das pessoas vindas lá da roça para a cidade, quando eram crianças e adolescentes tinham medo de defunto. As lendas povoando o imaginário do povo humilde do sertão vão longe remoendo coisas sobre moradores antigos. Existem as benzedeiras, sempre imaginadas como detentoras d´alguma mandinga com o alem.

Alguns dizem ter parte com o Demo, outros disto ser ligação com divindades. O certo é que vindo eu do interior carregava estas superstições, muitas crendices. Pessoas mortas eram muito perigosas. Melhor mesmo é evitar. Foi aqui na capital onde entendi: pessoas vivas devem ser muito mais temidas.

Estudando virei advogado. A profissão me foi meio ingrata, não dando os rendimentos necessários para sobreviver. Regressei ao batente de mecânico enquanto estudava mais e pra valer. Queria passar num concurso. Logrei êxito para delegado de polícia. Durante o curso de formação, fiquei sabendo ter de examinar locais de crime, inclusive homicídios.

Na academia, sempre íamos aos pares ver pessoas assassinadas. No local existiam outros policiais, muita gente para a alma dos mortos atacarem de uma vez. Não havia perigo. Terminado o curso fui designado para Goiatuba, cidade ordeira e progressista do sul. Na delegacia havia poucos policiais da polícia civil eram apenas um escrivão e um radiotelegrafista e ninguém mais.

Os policiais militares eram muitos, mas estavam sob outro comando, outra orientação. Mal corre um mês, sou acordado pela madruga duma sexta-feira feira santa. O escrivão, morador antigo, vinha comunicar o encontro dum cadáver na fazenda Lajinha.

Tentei descartar o assunto para a Polícia Militar, mas não teve jeito, era conosco mesmo. Tinha de visitar o local do crime. Recolher o cadáver. Lá vamos nós em uma viatura Fiat 147. Uma biboqueira tremenda de meter medo em qualquer corajoso. O farol do carro não rompia nada, por causa de tanta curva e buraco.

Avistei uma encruzilhada, provida de mata-burro, o farol bateu na cerca e um corujão maior que uma galinha vôo grasnando por cima da viatura. Arrepiei da ponta do dedão do pé até ao último fio de cabelo. A luz do carro esbarrou nalguma coisa bem no meio da encruzilhada. Parecia com um homem deitado. Meu departamento de medo acusou na hora: deve ser o defunto.

Descemos do carro, deixando-o com as luzes ligadas. O escrivão ia à frente e eu atrás, coladinho nele. Não podia dizer dos meus receios, era a autoridade em comando, tinha de demonstrar coragem... mas ela estava ausente. Não sei explicar como, mas do meio do mato veio um tropel dos diabos, era um casal de catetos brigando.

Vinham para cima de nós. Peguei o meu trabuco e subi na cerca. Precisa defender. O escrivão também o fez. Antes de dar alguns tiros os bichos passaram. Era mau agouro, mau presságio. Chegamos perto do presunto. Era um homem duns oitenta anos, estava jogado ali.

O escrivão, homem corajoso, tomou o pulso e escutou. Não tinha vida, pior pra mim, estava morto, mortinho mesmo. Aquilo só podia ser coisa arrumada para virar assombração. Desde o movimento da coruja meus pelos estavam eriçados igual arame brabo. Assim permaneciam.

O clarão do farol do carro foi morrendo de repente e virou puro breu. O escrivão acendeu uma binga e com ela examinamos mais ou menos o morto. Não tinha jeito d´eu escapar, deixar o morto ali não podíamos. Esperar não se sabia o que, o escuro era demais, tivemos de pegar o cadáver e colocar no porta-malas.

Finalmente conseguimos ajeitar a carga. Fiquei cismando em não querer voltar com o escrivão, mas havia um problema, ficar ali era pior ainda. O carro não queria pegar de jeito nenhum. Fui para o volante e o auxiliar empurrou o carro. Passou o mata-burro. Como era descida a viatura foi dando trancos e estampidos pegando, não pegando. Andou mais de quinhentos metros. O escrivão ficou para trás e sumiu no escuro da noite.

Quando o Fiat 147 firmou a aceleração consegui virar. Não vi o meu ajudante. O homem tinha aproveitado para fazer suas necessidades no mato. Voltei devagarzinho, procurando e não o via. Cismei muito mais ainda, pensando dele ter virado assombração. Olhar para o fundo do carro eu não atrevia de forma alguma. O defunto estava lá e me metia muito medo. O carro começou a ratear e tive de desligar o farol.

Resolvi sair para ver o compartimento do motor, se havia algum fio solto. Sem luz não tinha como romper nenhum metro. Nisto o escrivão voltou de dentro do mato e bateu no meu ombro, perguntando se podíamos vir embora. Dei um grito tão apertado, de cuja lembrança não esqueço até hoje, como foi custoso. Quando voltei ao meu normal, estava grudado no pescoço do escrivão querendo matá-lo.

Hoje mais acostumado com a profissão, fico pensando se acaso houvesse matado meu auxiliar, aí estaria perdido mesmo, com dois defuntos. Ainda bem para mim. Recuperei a calma a tempo. Há sim, hoje não tenho mais medo de defunto, só dos vivos.

 AVECREDO!

BREVE CURRÍCULO

 

EURIPEDES DA SILVA – nascido em Colômbia-SP no ano de 1950. Ingressou na Polícia Militar em 1.972, se graduando sargento onde permaneceu por cinco anos. Formou-se em Direito pela UFG em 1979.Aprovado em concurso público de 1983 na área de segurança pública. Como delegado de polícia, atuou nas cidades de Itumbiara, Goiatuba e Goiânia. Publicou os romances policiais: AR15 - A NOVA LEI; EMBOSCADA- A POLÍTICA A SERVIÇO DO CRIME; NOITE MACABRA e OPERAÇÃO AVESTRUZ. Em 2006 enveredou pela literatura infantil com a fábula GIOVANA, UMA COBRINHA MUITO ESPERTA, todas as obras com o pseudônimo de Delegado Euripedes III. Encontra-se no prelo para publicação ainda em 2007 da aventura infantil BIRIBA - O PEIXINHO DO RIO POLUÍDO, e da ficção científica MISSÍL DO ET DE VARGINHA. Premiado no concurso SESI/BANCO DO BRASIL - ARTE E CRIATIVIDADE (Estado de Goiás) em 2001, 2003, 2006 e 2007.